15 de set. de 2010

A Descoberta do Livro da Paixão



O livro da paixão


A) A LEGENDA E O LIVRO DA PAIXÃO
A Legenda de Santa Eustóquia Calafato, biografia compilada em colaboração recíproca entre as irmãs Cecília Ansalone, Giovana Vacari e Jacoba Policino, suas companheiras, e atribuída a Jacoba, que lhe deu a substancial urdidura literária. Como abadessa naquele tempo, no ano de 1486 enviou uma cópia da Legenda à Bem-aventurada Cecília Coppoli, abadessa do mosteiro de Clarissas em Foligno, que a tinha pedido explicitamente. Neste texto biográfico,faz recordação de um “Livreto da Paixão”, escrito pela mesma Eustóquia. A Legenda já havia falado de seu inflamado amor a Jesus Crucificado como característica maior de sua admirável vida, como a sua nota dominante num programa de conhecimento, de amor e de assimilação, circundados de mil atenções e ternura, e coroados, da parte do Amado, com os sinais mesmos da Paixão, feita comunhão num inebriante empenho de salvação.
Deste Livreto, durante a história nestes séculos, tinha-se perdido todo traço: o último aceno sobre a existência de seu manuscrito no mosteiro das Clarissas de Montevergine é de B. Chiarello, em 1705, nas suas “Memórias sacras da cidade de Messina”. Os difíceis acontecimentos vividos por Messina, na sucessão de terremotos e destruições nos séculos, podem ter destruído a obra na qual a grande mística derramou o ardor de sua alma inebriada de Deus e apaixonada pelo Crucificado.
B) ENCONTRO DO LIVRO
Francisco Terrizzi, SJ, que coordenou a edição do Livro da Paixão em 1979, testemunha que “um vago mas fundado pressentimento” o fez empreender buscas deste Livreto em Ferrara, na Biblioteca Cívica Ariostea, onde existe o manuscrito mais antigo da Legenda da Beata Eustóquia. A 23 de maio de 1972 encontrou-se diante do ms.II 232, com o título: “Meditazione sopra la Passione di Messer Jhesu Xo”, no qual reconheceu uma cópia do livro procurado.

C) SUAS CARACTERÍSTICAS
Este códice mede 110mm x 75mm e tem 170 páginas, com decorativa escrita gótica em dezesseis linhas não constantes, e títulos em roxo; além disso contém belas ilustrações e as iniciais de cada capítulo decoradas. Fecha a primeira página, decorada de abundantes cravos, um medalhão com escudo dividido em dois planos: no superior há, à esquerda, uma cabeça de porco, e à direita a de um pintinho. No plano inferior se percebem o corpo do porco e do pintinho. Dir-se-ia que o escudo representa um ovo, de cujo plasma se nutrem o porco e o pintinho. O escudo está contido em dois quadrados entrelaçados horizontal e verticalmente, de modo a formar oito triângulos: no da esquerda se lê E no correspondente à direita há um J com cabeça de pintinho.
Esta página, segundo Francisco Terrizzi, se apresenta como a carteira de identidade de todo o códice, que contém, além do Livro da Paixão, um “Tratado pelo qual se demonstra as coisas que são necessárias saber a cada fiel cristão em relação ao que possa levar à salvação”. O brasão que abre o Livro da Paixão neste códice deixa claro muitas coisas: o porco era o brasão dos Calafato, e em conseqüência o E do triângulo que a ele corresponde deverá ser lido como abreviação de Eustóquia Calafato; o pintinho era o brasão da família Pollicino, e o J com a cabeça de pintinho, à direita, não pode ser outra coisa que a abreviação de Jacoba Pollicino. Segundo Terrizzi, o Livro da Paixão seria atribuído a Eustóquia e, por analogia, o Tratado que segue à Paixão no mesmo manuscrito, poderia supor-se escrito por Jacoba Pollicino.
O Livro da Paixão ocupa neste códice as primeiras 123 páginas. A cópia foi feita em Ferrara ao mesmo tempo em que era transcrita a Legenda, que terminou a 17 de julho de 1493, como faz supor o pergaminho usado, as iluminuras e miniaturas no mesmo estilo emiliano não posteriores ao segundo decênio de 1500.

D) SUAS DIVISÕES
A Paixão, precedida de um prólogo, é proposta em dezesseis capítulos: inicia com a descrição de Jesus, segue Jesus no triunfo de Jerusalém, na expansão amorosa do Cenáculo, na amargura da traição, na desolação do abandono por parte dos apóstolos, nas humilhações e atrozes dores da via dolorosa, culminada na crucificação entre dois malfeitores. Deixa-o enfim deposto da cruz e fechado na solidão do sepulcro, do qual por último se afasta a Mãe dolorosa.

E) AUTORIA: ANÁLISE COMPARATIVA DO TEXTO
Em todo o códice não há uma referência explícita ao seu autor ou à sua autora, ou a mais de uma. Encontra-se, porém, uma estranha semelhança de estilo, de linguagem e de pensamento com a Legenda de Eustóquia de Messina. Isto levou Terrizzi a empreender a análise textual comparativa das duas obras. Ainda que não seja uma radiografia nítida e completa, deu resultados inesperados e inconfundíveis: os dois trabalhos se diriam saídos do mesmo mosteiro, já que com certeza a Legenda foi escrito por Irmã Jacoba Pollicino do Mosteiro Montevergine de Messina. Se não se quisesse atribuir a Paixão à Eustóquia, que realmente escreveu uma, seria necessário atribuí-la a uma pessoa que conheceu Eustóquia e os seus costumes de vida, sua espiritualidade em que pesa profundamente o amor enamorado a Jesus Crucificado, e o desejo de fazer chegar a uma assimilação e proximidade quem medita e contempla a Paixão.

F) RESULTADOS DA ANÁLISE
1.      É de uma mão siciliana: a análise mostra que o Livro da Paixão não saiu das mãos de uma pessoa que falasse e escrevesse o toscano como sua língua natal. São inumeráveis e abundantíssimos os sicilianismos, aos quais Terrizzi reporta em numerosas notas na edição do Livro que organizou.
2.      Não é tradução do dialeto siciliano: embora o exposto acima, o texto do códice não é tradução do siciliano. Dado que a “Paixão”, após a morte de Eustóquia, emigrou para Ferrara, houve necessidade de uma aproximação da língua do texto siciliano para o toscano. A cópia é uma mistura, com efeito, do siciliano e do toscano, feita por alguém que não dominava bem as duas línguas, e por isso só traduz parcialmente, omitindo partes fáceis e de óbvia versão.
3.      Possui uma forte semelhança lingüística com a Legenda: a análise pôs em evidência também a grande semelhança lingüística entre a Paixão e a Legenda. Essas semelhanças são indicadas por Terrizzi em notas abundantes. Isto tem uma função indicadora e clarificadora, que leva à atenção para com uma maneira usual própria de pensar e de exprimir-se frente ao mesmo objeto.
4.      Possui uma semelhança e profundos contatos com a Legenda: tanto a Legenda como o Livro da Paixão atribui a Eustóquia, como característica de sua espiritualidade, em referência ao seu centro de atração, um amor marcante a Jesus Crucificado. Jesus é visto quase sempre numa perspectiva de humilhação e de dor, tendo como chave o amor que de dois corações fez um, depois da purificação da ascese, na união mística, nutrida de ardor sereno e abrangente em todas as suas manifestações. Aparece, assim, que a finalidade do Livro da Paixão não é somente a de levar a uma união com Deus como comumente se compreenderia, mas especialmente a de colocar a alma sobre o caminho da cpntemplação, e iniciá-la naquela união que tem o seu termo e a sua consumação nas núpcias místicas com Jesus.
5.      A belíssima gama de apelativos usados por Eustóquia em relação a Jesus, e reportados pela Legenda, repetem-se no Livro da Paixão. A alma de toda a multiplicidade de afetos, apresentados tanto num como em outro livro, através de tantos adjetivos, é sempre uma profunda ternura que reduz tudo a uma uniformidade substancial.

G) HIPÓTESE SOBRE O MINIATURISTA
A abundante presença de cravos como moldura de toda a primeira página fez Terrizzi supor o trabalho do miniaturista Benvindo Sisi, chamado o “cravista” (“garófalo”). Ele é ferrarense (1481-1559), e passou à história da arte pelas muitas obras deixadas na Basílica de São Francisco em Ferrara, como o “Rafael” da pintura ferrarense. Dada a importância atribuída ao Livro da Paixão, o afeto e a estima por um livro de valor incomum, não admiraria que se tivesse recorrido a um artista de verdadeira fama para a decoração.

H) O MANUSCRITO FV 24, DA BIBLIOTECA UNIVERSITÀRIA DE MESSINA
Diego Ciccarelli OFMConv. num estudo sobre os Manuscritos Franciscanos da Biblioteca Universitária de Messina, editado em Roma no ano de 1978, faz um confronto entre o Livro da Paixão e as Meditationes passionis Christi contidas no ms. Fv24. As coincidências citadas por ele não são muitas, mas qualitativamente de um interesse considerável, segundo Terrizzi. Embora este não possa afirmar qual dos dois manuscritos, o de Ferrara ou o de Messina, seja anterior, nem se um dependeu do outro, vê o ms. de Messina como um “parente” próximo do Livro da Paixão, ainda mesmo se seu texto é latino. Sua composição é do século XV, a mesma época do Livro da Paixão, e é atribuído ao trabalho de um franciscano.
O Livro da Paixão parece seguir as Meditationes na estrutura e no modo de dar os títulos. A sobriedade e linearidade do Livro da Paixão manifestam uma mente sintética, distante de divagações, ainda que piedosas, o que muito contribui para a sua eficácia. Para Terrizzi, o fato de as Meditationes estarem em latim, se acaso Eustóquia as tenha utilizado, não se constitui problema, uma vez que para a cópia da Forma de Vida de Santa Clara em latim, conseguida por Bartolomeo Ansalone e por ela utilizada por toda a vida, fez uma tradução em siciliano. Todas as duas redações se conservam no arquivo do Mosteiro de Montevergine em Messina: aquela em dialeto segue a ordem e as inversões da cópia em latim, e por isso conclui-se que dela depende. Eustóquia, para facilitar o uso da Forma de Vida pelas irmãs menos instruídas, traduziu ou fez traduzi-la para o dialeto siciliano.
Eustóquia endereça o seu Livro da Paixão não a si mesma, mas às suas irmãs, que haviam solicitado a ela que escrevesse algo de sua experiência espiritual na consideração mística da Paixão de Jesus, como transbordava de sua espiritualidade. Ela está longe de todo pensamento de mérito próprio, de exibicionismo dos dons recebidos de Deus. A simplicidade com que desenvolve as suas considerações sobre a Paixão reporta àquela dos Evangelhos, com elementos de tradições então correntes e expressões destacadas de sua piedade pessoal.

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